Depois de uma hora de caminhada e a dúvida entre a novela da Carminha ou algum outro ócio menos criativo na TV, a sacada chama a atenção para um grupo de crianças lá embaixo gritando que um dos concorrentes vai cair de boca. De Boca...
1982. O menino tinha seis, sete anos e todos os domingos vivia o mesmo ritual. Almoço em família que ainda existia naquela época. Fogão a lenha no quintal preparava um dos frangos que também residiam por ali, polenta, macarrão. Farofa. Suco de laranja. Avó na ponta da mesa, pai ansioso, mãe sorridente, irmã calada e ele ali, esperando o início do fim. O pai levantava e seguia para um pequeno cochilo. Ao acordar, levava ele mesmo o menino ao banho e vestia nele o uniforme do time da cidade – MAC – Mirandópolis Atlético Clube – e de mãos dadas seguiam para a grande arena, quase vazia, onde sempre algum time das cidades vizinhas disputava com a estrela da Cidade Labor a quase pelada regional. Radinhos de pilha na mão e o sol na cabeça. Pipoca. Clima quente, quase áspero, e a bola corria.... Puta coisa chata! A criança nunca gostou daquele ritual e tão pouco entendia qual a graça naquilo tudo. Esporte? Diversão? Desculpa para quebrar o ócio domingueiro? Preparação para garantir a sobrevivência da família pelos dias da semana que estavam por vir?
Mas criança é criança e, naquela época, não tinha voz ativa. Mas tinha criatividade. E então o menino descobriu que o pós almoço seria o momento ideal para colocar em prática o que aprendera com outros de seus pares na escola. A mistura de pão seco com água morna, salgada, causaria em minutos uma crise de vômito capaz de colocar inveja a garota do filme Exorcista. E o plano, colocado em prática durante o cochilo do pai, sempre surtia efeito. “O menino está doente, comeu alguma coisa que não fez bem. Vai ficar em casa hoje.” Uma, duas, várias vezes, sempre funcionou.
O pai caminhava sozinho ao estádio, o garoto ficava. Brincava na casa dos vizinhos e gostava até mesmo de ver um deles, “Seu João”, cuja idade e o peso abdominal impediam de ir às partidas e se movimentava na poltrona como se estivesse ele mesmo em campo. Certa vez o acento virou sobre ele e mesmo ali, no chão, o rádio continuou narrando os dribles que não podia ver.
O pai nunca soube ao certo o motivo dos vômitos repentinos, mas ficava feliz em ver o menino brincando em casa quando voltava. Até o dia em que descobriu que enquanto acompanhava os chutes na grande arena, o menino refestelava-se entre pipoca e algodão doce na praça a dois quarteirões de sua casa onde no coreto, daqueles antigos de cidades antigas, uma banda de velhinhos tocava metais e liras além de um grande trombone. Fon fon, foron fon fon... era lindo, o menino gostava daquilo.
Quando o pai descobriu não houve grandes alardes. Naquela época criança ainda se educava com puxões de orelha, mas, também lá, qualquer olhada de um pai magoado valia mais do que meia dúzia de palmadas. Entendeu o recado, mas algo se quebrou.
Quanto tempo se passou? Trinta anos? A paixão inversa pelo futebol ainda é presente na vida do menino, hoje sem pai, mãe ou as galinhas que dormiam no fogão a lenha onde também eram cozidas aos domingos. Para salvar o pai, a irmã corintiana do garoto resolveu o problema e hoje mesmo uma marca de café com o nome do time preferido é ostentada em sua cozinha. Os pacotes vazios nunca vão para o lixo e formam um painel até interessante entre a geladeira e a janela dos fundos. O menino ainda não entende de futebol, não gosta de futebol e em uma dessas copas do mundo refestelou-se em sua casa ouvindo Edith Piaf quando o Brasil perdeu para a França. Amor reverso, amor inverso. Ne me quite pás... Até mesmo o professor / mestre da faculdade um dia perguntou a ele se nunca havia feito um gol. Mais do que o espanto pela pergunta o susto por quem a fez. O professor não tinha pernas e do alto de suas próteses que por tanto tempo o menino, já rapaz, acompanhou, olhava para o discípulo (sim, discípulo, seguidor e filho) como se ele sim, o aluno, não fosse um ser humano completo. Todo mundo tem que fazer um gol!!!!
Na verdade, o rapaz nunca entendera certas paixões. Mesmo com sua tendência a gostar do que poucos gostam, de presentear-se a si mesmo com vinis de músicos que morreram antes mesmo dele nascer ou de seguir bandas de terras distantes chamadas por aqui de Islândia, não entende por que a alegria alheia deve ser compartilhada por ele.
As crianças continuam na rua. Naquele tempo criança também tinha hora para entrar em casa e gritar com os carros, jamais! Talvez devesse ter se empenhado mais com o pai a gostar um pouco das partidas varzeanas de domingo. De sol na testa, de pipoca, de radinho de pilha na orelha, mas nem todos são iguais, mesmo os filhos e aqueles a quem se deve a vida ou, no meu caso, a educação.
Melhor fechar a janela. Existe ainda um livro novo recém comprado para terminar de ler.... ouvindo, quem sabe, um tango de Gardel.